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Aqui há uns anos estava eu no rendimento mínimo e a morar num quarto sem acesso a cozinha, ia por volta do meio-dia à Rua das Cordas buscar o meu taparuere de comida social e comparticipada, aliás dois, um de conduto e outro de sopa, por um euro, tomava um café no café que se tornou habitual onde podia ver o futebol e falar com turistas. De vez em quando falava com pessoas novas, que apareciam e metiam conversa, falava com eles, fumava, bebia o café, estava lá um pouco mais de tempo e depois vinha para casa, comia a sopa, aquecia a sopa no microondas. Geralmente depois voltava para o café para um segundo café e ficava lá até às onze ou então vinha mais cedo para casa e punha-me a ler um livro antes de dormir. Basicamente esta era a minha vida. De manhã, acordava e costumava ir a uma pastelaria tomar o café e um bolo e com a ideia de ler o jornal, tentava ler o jornal, nem sempre conseguia, estava lá, depois vinha para casa ou andava ali pela zona, não tinha passe de transporte público, tinha que andar a pé, era assim que eu fazia, na altura estava a começar a voltar à pintura depois de alguns anos parado, anos em que tinha feito outras coisas, outros objectivos, outros entretenimentos, outras coisas mais importantes também, uma pessoa com quem as relações tinham terminado, contrato de trabalho não renovado, mudança de casa dos pais para alojamento próprio, sujeição a quartos sem qualidade e a vizinhos sem motivos de interesse, vizinhos que só te puxam para baixo, sujeição porque quem fica sem emprego não pode pagar a renda de uma casa inteira... estava a voltar à pintura que era a única coisa que eu tinha que achava poder apresentar ao mundo... a minha vida era muito básica, estava no rendimento mínimo, uma prestação social, duas palavras com uma carga não metafórica mas muito estigmatizante, a gente às vezes não aceita um trabalho porque tem medo de perder o rendimento mínimo, porque o trabalho correu mal, a gente vem para a rua e a gente fica sem nada porque nos cortaram o rendimento mínimo, isto quando há contratos oficiais e não contratos só falados, só de boca, muitas vezes os contratos são temporários, de um ou dois meses, a gente perder o rendimento mínimo por um contrato de dois meses, às vezes ao fim de quinze dias, mesmo ao fim de uma hora a gente perde o contrato porque fez qualquer coisa de errado, o patrão não gostou e mandou embora. Então, às vezes não se procura trabalho, deixam-se as coisas andar. Não será a melhor maneira de viver a realidade laboral ou a realidade de procurar emprego mas acontece a muito boa gente o desistir e conformar-se e tentar viver com o mínimo que tem ou que lhe dão. Resumo: estava no rsi, comia na assistência social, e passava o meu tempo no café ou na rua vendo os turistas que passavam, pintava nos entretantos, lia para me entreter, era assim que eu vivia.
Nestes dias era novo na zona, tinha ido para lá há dois meses, era relativamente novo e não conhecia ninguém, vivia das pessoas que ia conhecendo, com quem fazia contacto no café ou na pastelaria. Foi deste modo que conheci o senhor Falcão, também aparecia com livros na mão, a ler e nós acabámos por fazer contacto. Começámos a falar de livros, ele muito interessado em ouvir-me falar de livros e para mim, que sou uma pessoa que nem sempre tem os melhores ouvintes ou nem sequer ouvintes tem, poder falar de coisas além do futebol, poder falar de livros, para mim é bom poder ter uma conversa num café sobre os livros que estou a ler ou os livros que li, tirar ideias e receber ideias vindas de dentro dos livros, até o meu cunhado, que poucas vezes lê e quase só lê Tolkien, ou desse género, foi capaz de transcrever com palavras suas uma frase que leu: num livro um leitor vive uma vida imaginada e pode fazer da sua vida o que quiser... vim a saber que o senhor Falcão era psicólogo ou tinha sido psicólogo, dera aulas em universidades ou institutos, agora por acaso acabou por me dizer que também estava no rendimento mínimo, ele era mais velho que eu, cinquenta e poucos, também era um leitor àvido, falou-me de Kierkegaard, ficou muito pasmado por eu estar a ler no momento Gille Deleuze em inglês, o anti-édipo, nunca consegui arranjar a tradução em português, quando a vi custava trinta euros, ele disse-me que a tinha arranjado em livro usado com um super desconto porque lhe faltava a última página, fui uma vez a uma livraria que já não existe e encomendei, eles tiveram que mandar vir do distribuidor em Espanha, demorou dois ou três meses mas eu consegui lê-lo em inglês, ele estava espantado, eu falei-lhe que o estava a ler também para me conhecer melhor, para conhecer melhor o que se diz sobre a esquizofrenia, cheguei a comentar que Deleuze dá voz aos mecanismos da esquizofrenia mas também será um pouco irónico quando diz que nunca viu um esquizofrénico, cá para mim ele via esquizofrénicos por todo o lado porque o mundo em si assim o é, os mecanismos pelos quais se rege o mundo é a esquizofrenia, é a gente tentar-se aproximar do centro e ser afastado para a periferia, para a fronteira, para lá da fronteira, os esquizofrénicos são aqueles que tentam furar essa barreira ou são aqueles que se conformam e desistem deitados num qualquer canto.
Falámos de outros livros, eu também lhe disse que escrevia, mostrei-lhe algumas zines que eu próprio tinha editado e que andava a distribuir por um euro, dois euros, umas zines de texto e desenhos, acabou por me dar dois euros por uma zine que eu lhe tinha dado e ele dado a uma amiga que gostou e fez questão de pagar. Pronto, foram assim os contactos iniciais com o senhor Falcão, eu cheguei a numa consulta ter dito à médica que me segue que agora tinha um amigo que me dizia: torna-te muito doente e escreve; recordo que a médica não ficou impressionada com este novo amigo e eu próprio compreendi que, às vezes, as pessoas não se importam que outros tenham um colapso se entretanto puderem lucrar com isso, seja na forma de um espectáculo de variedades ou de uns versos loucos e perfumados, para algumas pessoas a loucura é bela, vão visitá-la ao hospital quando não a deixam morrer sozinha lá dentro, e dizem: «é a vida, a mim isto nunca me acontecerá mas os versos do poeta louco são únicos».
Entretanto, começámos a marcar horas no café para nos encontramos, «foi assim que começaste a ser namorado», é, parece que sim, falar e tal, tomar café, estavamos uma vez à noite, nove horas ou quê, estavamos a conversar já não sei de quê e aparece um tipo que começa a falar comigo e a dizer que me conhecia, eu olhei para ele e não o conheci de lado nenhum, ele começou a dizer: tu não és aquele de há vinte anos atrás, tinhas o cabelo comprido, tal, eu lembro-me de ti tal, começou a dar pormenores, e eu de facto comecei a ver que sim era um gajo que eu tinha conhecido quando andava na universidade, ele estava também bastante diferente, acabou por se sentar connosco e eu reparei que o senhor falcão ficou a sentir-se trocado, o gajo estava com uma garrafa de cerveja de dois litros num saco com latas de Red Bull, uma das latas entornou-se e ele andou a limpar o chão sem ninguém lhe pedir, todo ele num estado ultra ansioso, disse que tinha vindo de comboio, acabou por perguntar se eu não me importava que ele dormisse no meu chão, porque estava sozinho e já não tinha comboio para casa. Eu disse que não, que não, que não podia dormir, que o quarto era pequeno, não tinha condições. Ele estava a fazer o filme, a dizer que estava desgraçado, contou como ganhou muito dinheiro como serralheiro a argon e como estourara o dinheiro todo em coca, que tinha sido hospitalizado e que não podia beber, que podia morrer de um momento para o outro, a dizer que ia então dormir na rua... ah eu acho que ele não tinha dinheiro para pagar o dinheiro do bilhete do último comboio da noite, então eu sugeri comprar-lhe a cerveja, dar-lhe dois euros pela cerveja para ele ter dinheiro para ir no comboio embora, ele tentou fazer negócio, tentou que eu lhe desse mais dinheiro mas ele viu que eu não ia dar mais e aceitou os dois euros, vi-me assim, eu que não bebo, a sair do café com o senhor Falcão e com um garrafa de dois litros de cerveja na mão. o senhor Falcão estava um bocado incomodado por o nosso patois privado estar a ser corrompido por um estrangeiro que ele não conhecia de lado nenhum, disse-me até que eu tinha desempenhado o papel de um médico e ficou melhor quando eu decidi aceitar o convite para conhecer a casa dele.
Acabou por não se beber a cerveja, tinha uma grande estante de livros, tinha uma tv que só dava a cor castanha, era uma casa pela qual ele já não pagava renda, por estar quase devoluta, mas era uma casa só para ele, com dois quartos, uma sala, uma marquise para as traseiras, ele começou a falar-me de Ramakrishna, leu escritos indianos em francês, eu comecei a dizer-lhe que o meu francês era um bocado rústico e que há muito não praticava nem lia em francês, ela começou a falar na metodologia do amor, no transcendentalismo, depois quando eu lhe disse que tinha livros em francês do Genet, e que ainda não os tinha lido por não perceber bem as palavras, aí ele ficou interessado, acabou por me querer mostrar as traseiras para ver a vista do rio, aquilo era estreito, era um espaço estreito, só cabia uma pessoa, e ele quis quase que eu me encostasse a ele para eu poder olhar lá para baixo, ele com cara de dominador, e eu não disse que não, encostei um bocadinho, ignorei, olhei, só vi noite e escuro e voltei para a sala, sentei-me, havia charros a rolar, os meus e os dele, e eu comecei a ver: estou aqui a apanhar um bocado de seca apenas com o pretexto dos livros. Ele começou a ligar as antenas, a fazer perguntas sobre os meus gostos, falou-se do pintor Francis Bacon, ele sempre a associar, a insidiar-se, sempre interessado em que a coisa corresse bem, eu comecei a ver que a coisa começava a correr mal, comecei a disfarçar, a cortar as conversas, a ser insolente, a abolir as distâncias verbais e os modos de comunicação, comecei a dizer que o que me interessava no Genet era a mitologia do criminoso, do ser que assume que é mau, que faz maldades, que trai por motivo nenhum, sem razão aparente, ele começou a chegar-se mais no sofá, a fazer sorriso, e eu para disfarçar enrolava mais um charro, ele começou a dizer que mais charros não, que já tinha fumado a conta dele, e eu comecei a ver que a única coisa que me sustentava ali era poder fumar o charro, porque embora a conversa fosse literariamente interessante estava a ficar emocionalmente perigosa, eu comecei a entrar naquele estado em que começo a disparatar, em que começo a fazer de maluco ou a ser maluco, a fugir à pressão, é tornando-me guna que eu afasto o perigo das pessoas que se aproximam demais, em momentos de tensão eu, por vezes, reajo à tensão de um modo disparatado, estúpida, irracional, não têm explicação as palavras que eu digo quando estou numa situação de confronto, e eu neste caso comecei a ver que ele estava numa de fazer o papel de senhor perante mim, estava a querer pôr a asa e eu comecei a disparatar, a tornar-me desinteressante, sempre a fumar charro atrás de charro.
Aqui, ele talvez tivesse visto o que queria ver, ele como psicólogo talvez estivesse a fazer também um outro jogo, a testar os meus limites, para ver o que eu era na realidade depois do limite, o modo como a gente reage depois de se atingir o limite, isso define muitas vezes o nosso carácter, perdemos qualidades humanas e tornamo-nos bestas, eu sinto um bocado de revolta por eu próprio ser assim, por não ter melhor carácter, foi aí que ele se entendeu ao comprido no sofá e eu pensei: já fumei ganza o suficiente, o homem quer dormir, vou embora, já é meia-noite, vou para casa dormir, amanhã tenho coisas para fazer.
Vim-me embora, a pensar no caso, na minha prestação e no que tinha sido dito, e no que ele poderia ter querido com aquela conversa, pensei: olha, frustrei-lhe os planos. No dia seguinte, encontrei-o ao pequeno almoço na pastelaria, estava a ler Proust em francês, aquele da casa de Swann, não sei bem o nome do livro, e eu comecei a descobri-lo, ele muito terno para mim, e eu a sorrir, a manjar as suas ideias, a perceber que ele queria ser dominador, e eu não gosto de ser dominado. Não foi nada falado sobre o dia anterior, para ele era tudo já subentendido, como se eu e ele fôssemos iguais. Eu sorri, ignorei o subtexto, tomei o café, não consegui ler o jornal, vim-me embora. Ficámos assim.
Dois dias mais tarde, no mesmo café das seis da tarde, estou eu, ele, e outro rapaz que tem problemas mentais piores que os meus, porque a sua linguagem é sempre incoerente e a minha o é só em situações limite, estavamos lá, eu e o Né a falar, o senhor Falcão mete-se na conversa, a falar em inglês, a perguntar o que se passava para eu o ignorar, e acaba por terminar uma das suas frases a dizer «porque tu és um paneleiro!», eu olho para ele com cara de mau, e digo ao Né para irmos fumar um charro lá fora, fomos, deixamo-lo sozinho, estivemos lá fora cerca de dez minutos, voltamos para dentro, ignoramo-lo, ele acabou por se sentir ignorado, veio até à nossa beira para se despedir, eu apertei-lhe a mão naquela de o mandar embora, e foi assim a última conversa com o Falcão. Dois dias depois, no mesmo café, estava eu e uns colegas, ele entra, mete-se mais uma vez no meio de mim e dos outros, alguém protesta, eu digo «é um curioso!», foi o que bastou para alguém dizer «raios fodam lá os paneleiros!», foi assim que ele foi embora tão depressa como chegou, ainda olhou para trás para mim, ele quase chorava ele sofria, nunca mais apareceu no café, comecei a vê-lo na rua incomodando meninos de erasmus ou estudantes de artes, a tentar manter contacto com eles na rua, mas sempre caminhando um metro atrás, sempre com as mãos em concha levantadas, inclinado para a frente a tentar explicar qualquer coisa, a tentar cativar, como se fosse um pedinte sexual, como se estivesse a ressacar, tendo sido recusado por mim estando a tentar arranjar substituto para mim, eu passei por ele, ele não me viu, e eu pensei: olha como as coisas são, o senhor falcão, psicólogo, escritor talvez de livros até publicados em nome próprio, já que falcão é a alcunha que lhe dou, o falcão é afinal um desgraçado no rendimento mínimo, a vida tinha corrido mal, casamento falhado, os filhos não querendo saber dele, reduzido a cortejar na rua, é... é isto que tenho a dizer sobre a curiosidade.
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Claudio Mur
O testemunho/ relato (presumo, mas pode ser ficção) é extraordinário, porque a um tempo cru, objectivo, e transitório. Com poucos juízos, como eu gosto, mas que deixa a pensar, como eu também gosto. Falcões, independentemente do género e preferências gastronómicas, há-os por todo o lado. Às tantas somos todos assim, os deficientes afectivos, não sei. Obrigada, mais uma vez, pela sinceridade.
ResponderEliminarhttps://www.youtube.com/watch?v=xAxKwHefrfQ&t=7s
eu li uma vez um livro do Henry Corbin 'The man of light in iranian sufism' que acho que explica o mundo maniqueísta: onde há luz também há escuro. às vezes somos falcões outras vezes pombas. somos todos deficientes afectivos, acho eu, não estás sozinha.
Eliminardeixo-te uma sugestão para colocares no são pedro, se estiveres com vontade de cachaça e de desanuviar, já tenho em vinil:
https://analogafrica.bandcamp.com/album/jamb-e-os-m-ticos-sons-da-amaz-nia
A história é baseada na memória que guardo desses dias e transcrevi-a de um registo audio que fiz com um telemóvel. Era uma ponta solta, uma história que eu já tinha tido vontade de contar mas ainda não tinha encontrado o tom mais adequado.
ResponderEliminarobrigado pela sugestão musical.