sábado, 8 de junho de 2019

Ultimato

Não sei definir senão por vontade de fixar a própria ideia fugidia o motivo pelo qual alguém escreve. Escreve-se geralmente para si mesmo, eu escrevo para me estruturar, para poder fazer o meu caminho com um mínimo de esperança em não me perder no futuro. Mas depois, há uma opção que se faz: ou se continua a escrever para a gaveta ou se partilha com os mais próximos ou, se houver essa oportunidade, com a edição pública em papel. Neste acto de partilhar o que se pretende? Valter Hugo Mãe diz recentemente que os escritores escrevem para serem amados. Outros como a Maria Agustina (segundo a citação feita por Diogo Vaz Pinto no jornal i) escrevem para entrarem em confronto, para discutir uma ideia, incomodar as gentes com a nossa ideia, impô-la talvez. Entre estas duas opiniões há todo um abismo mas o que distingue VHM de Agustina é a ideia de deus [sic]. Ouvi na rádio esta semana dizer uma coisa muito simples, parafraseando a Agustina: a mulher nunca está só, quando não tem um homem, tem deus com ela. E o problema de VHM talvez seja não ter ainda encontrado alguém que lhe faça companhia e não ter um substituto para deus que não seja o ser amado pelos seus leitores. VHM é um solitário, a pessoa VHM tem razões que eu não conheço, eu estou apenas a especular e a tentar arranjar pontos de contacto entre uma pessoa-poeta e eu-leitor, eu que também sou um solitário e que tenho na minha vida diária pouca gente com quem falar além dos triviais futebóis. 
Eu não tenho deus mas tento ter livros e música. A música oferece-me cenários para epifanias em que eu me liberto por breves momentos da miséria existencial que é a solidão. Os livros e também a leitura de blogs oferecem-me ideias com as quais eu interagir criando assim as minhas ligações com o mundo. Aprendo muito, a blogosfera está cheia de perspectivas e é melhor saber as notícias do dia nacional pelos blogs do que passar o dia colado à tv. Ficamos também a conhecer às vezes pessoas e o seu pensamento, criam-se afinidades na vida real, sabem-se os bastidores do ódio mútuo entre pares. Os blogs são como um mosaico de uma classe de certo modo culta em que se fantasiam situações, se esfaqueiam os inimigos, se partilha altruísticamente conhecimento, se distribuem beijinhos aos necessitados. Os livros são a ideia fixa e partilhada, o blog é a ideia em constante movimento, mutação e partilha. São dois dos meus passatempos quando não estou a pintar. Gosto de ver evoluir o pensamento de um escritor ou blogger, o modo como ele age ou reage, gosto de perceber se ele é sincero e genuíno ou usa truques baixos, gosto porque me vou instruindo e aprendendo acerca da condição humana, vou arranjando modos de eu próprio me completar e não ter de silenciar a minha voz. 
Encontro muitos pontos de contacto e às vezes compro livros.
Partilho em baixo um excerpto de um texto de Diogo Vaz Pinto que me parece um ponto de contacto entre a sua escrita e o meu modo de viver, é mais um dos exemplos em que um esquizofrénico como eu sente que há quem o descreva, que alguém escreveu com as palavras certas a minha vivencia. Por muito que irrite as pessoas, «Ultimato» é um grande livro de poesia em prosa, e não sei mesmo se o próprio DVP não se irritará com este elogio (agradecimento), mas ficou dito.


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Além, vivo mortificado a doce e lenta, musical gangrena. Dei por mim sem recreio, só já uma silhueta. Magoado com as minhas dúvidas, recortei a minha figura, de costas, em ponto cada vez mais pequeno. Sei o que vais dizer: oiço-te como um rádio que trago, às vezes tiro as pilhas. (Melhor que esmagar o grilo.) Irado, logo vou responder com os horrores todos que puder invocar. De seguida vamos passar uns dias sem pôr uma só frase direita, nem um grão de sentido que nos denuncie, desabafo nem porra nenhuma. Até que comece a passar por nós o movimento das coisas, sem desvio, a sua rotação, a água insistindo, querendo fazer curso. Como se estivéssemos no caminho, siderados, ouvindo bichanar esse vastíssimo mecanismo que parasitamos.
É o que sei de pior, como se ganha balanço dentro das próprias ilusões, e perdendo o pé se vem correndo lá do fundo, para se ultrapassar. Pior, trespassar, o que derrota toda a perspectiva. Os outros parecem restos frios de nós, pelo reflexo tão conotado que nos devolvem. E não pedimos segundas chances, convencidos de que se formos adiante poderemos fazer-nos sair. Como pondo fogo no bosque onde nos cercámos. Um tratamento desesperado para essa praga imensa da nossa criação. E no fim, num gesto último de decência, só queremos ser o anjo mandado lá de cima para se exterminar e à obra monumental dos seus erros raivosos, ressentidos, delirando com quantos dentes lhes armam a boca.
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página 89-90
«Ultimato»
Diogo Vaz Pinto
edição Maldoror

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