sexta-feira, 21 de junho de 2019

«Eu não tinha a possibilidade de esconder quem era.»

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A marca de nascença é quem ela é. Se fazemos desaparecer a mancha Georgiana desaparece com ela.
Não fazes ideia do efeito que essa história teve em mim. Li-a a toda a hora, pensava nela a toda a hora, e, a pouco e pouco, comecei a ver-me a mim mesma tal e qual como eu era. As outras pessoas traziam a sua humanidade dentro de si, mas eu exibia-a no meu rosto. Essa era a diferença entre mim e todos os outros. Eu não tinha a possibilidade de esconder quem era. Isso não me era permitido. Sempre que as pessoas olhavam para mim, estavam a olhar directamente para a minha alma. Eu não era uma rapariga feia -- e sabia disso -- mas também sabia que seria sempre definida por aquela mancha púrpura no meu rosto. Não valia a pena tentar livrar-me dela. Ela era o facto nuclear da minha vida, e desejar que ela desaparecesse teria sido o mesmo que pedir que me destruíssem. Eu nunca iria ter um tipo vulgar de felicidade, mas, depois de ter lido aquela história, dei-me conta de que tinha uma coisa que era quase tão boa como isso. Eu sabia o que as pessoas estavam a pensar. Bastava-me olhar para elas, estudar as suas reacções quando viam o lado esquerdo do meu rosto, para saber se podia ou não confiar nelas. A marca de nascença era o teste da humanidade dos outros. A marca de nascença media o valor das suas almas, e, se eu apurasse as minhas capacidades, seria capaz de ver o íntimo dos outros e saber que género de pessoas eram. Por volta dos dezasseis ou dezassete anos, tinha já a afinaçção perfeita de um diapasão. Isso não quer dizer que não me tenha enganado acerca desta ou daquela pessoa, mas, a maior parte das vezes, não me enganei. só que, por vezes, não fui capaz de parar.
Como a noite passada.
Não, não como a noite passada. Isso não foi um engano.
Quase nos matámos um ao outro.
Tinha de ser assim. Quando ficamos sem tempo, tudo se acelera. Não podíamos dar-nos ao luxo das apresentações formais, dos cumprimentos, de uma conversa discreta acompanhada por bebidas. Tinha de ser violento. Como dois planetas colidindo algures num longínquo ponto do espaço.
Não me digas que não tiveste medo.
Tive um medo de morte. Mas acontece que eu não me meti nisto às cegas. Tinha de estar preparada para tudo.
Disseram-te que eu era doido, não foi?
Essa palavra não foi usada uma única vez. A coisa mais forte que alguém disse foi esgotamento nervoso.
O que é que te disse o teu diapasão quando lá chegaste?
Já sabes a resposta.
Ficaste aterrada, não foi? Deixei-te sem pinga de sangue.
Foi mais do que isso. Tinha medo, mas, ao mesmo tempo, estava excitada, quase tremia de felicidade. Olhei para ti e, por breves momentos, foi quase como se estivesse a olhar para mim mesma. Isso nunca me tinha acontecido.
Gostaste.
Muito, muito. Estava tão perdida que pensava que ia desfazer-me em bocados.
E agora confias em mim.
Tu não me vais desapontar. E eu não te vou desapontar. ambos sabemos isso.
Que mais é que nós sabemos?
Nada. É por isso que estamos os dois aqui sentados neste carro. Porque somos iguais, e porque não sabemos mais nada para além disso.
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'O livro das ilusões', páginas 106-107
Paul Auster

Tradução de José Vieira de Lima
Edição Asa




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