quarta-feira, 26 de junho de 2019

IQ Hospital

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A sala tem seis metros por três de largura. Num dos lados, existe uma janela com pequenos rectângulos de vidro e um sofá com o jornal que leio todos os dias e o sobretudo azul que pertence a Carlos. Na parede mais larga, estão várias estantes contendo os meus livros e frascos que poderiam ser soluções caseiras de nitroglicerina ou veneno, igualmente um aquário. Do outro lado, um quadro contendo uma tabela com vários nomes onde Carlos aparece repetido aleatoriamente tanto como nome como apelido, na coluna seguinte, às vezes, aparece a palavra tribunal. A sala é alta e termina numa porta de madeira pintada de branco. Estou sentado no sofá e discurso, ou melhor, descrevo a sala e associo cada objecto a algo que conheço. Numa secretária, está sentada uma mulher atraente, de cabelos ruivos e calças pretas apertadas que ouve o que digo, às vezes com aflição, às vezes com estranheza. De pé, uma mulher de bata branca.
É obviamente uma conspiração, o terrorismo psicológico que o sistema faz para, por meio de lavagem cerebral, obter a confissão da verdade. Não! Não estou interessado em confessar a verdade, nem estou interessado em lavagem cerebral. Eu sei que estou a pequenos passos da cela. Só confessarei se me aplicarem o soro da verdade.
Levanto-me e continuo a descrever a sala, tentando com isto desconstruir a conspiração, aproximo-me do quadro e leio os nomes, pessoas ficcionadas eu sei, e enfatizo o nome de Carlos que aparece em mais de metade dos nomes, mostro-lhes a evidência. O tempo vai passando. A porta abre-se e vejo aqueles que colaboraram nesta conspiração. Ele olha confiante, quase cínico, agradado talvez com a minha reacção. Ela... não sei, só olho para ele. Outros olham assustados e curiosos para dentro da sala. Quem são? Não sei dizer. Não são prisioneiros, pois senão não estariam aqui, estariam na sua cela, serão talvez actores para somar a tantos outros.
A certa altura, a mulher que está sentada e quase chorando, diz que vou ter de levar uma injecção.
Ora aqui está!, o soro, a evidência. Grito que não tomo, querem porventura ver se tenho tatuagens no
cu.
Ela e a mulher de bata branca olham-me, outra mulher mais velha aparece igualmente de bata branca. Peço um copo de água, porque estou com a garganta seca de tanto falar. Esta ultima mulher sai e reaparece produzindo um copo com água, pousa-o com cuidado na secretária enquanto eu leio o jornal. Finalmente, pego no copo e bebo um gole. Descubro a evidência, a água tem sabor, olho e descubro na água bolhas de ar. O que puseram vocês na água?
Ouço uma voz dizendo baixinho: "Foi por causa dos comprimidos que..."
A minha voz, a minha raiva, eu acalmo-me subitamente, o que puseram no copo resulta. Decidem-se por uma injecção no ombro esquerdo e dizem-me para os acompanhar. Entro numa sala mais ampla onde estão outros actores sentados em mesas de madeira, jogam cartas. Sento-me e olho para a televisão. Passa pouco das oito da noite, vejo no telejornal uma reportagem sobre uma greve e respectiva marcha sindical de protesto, todos vão alegres, um deles tropeça ou olha para o sapato desculpando-se por algo, assumindo algo ou tentando dizer que também tem problemas com o sapato. Não recordo a cor do sapato. Alguns minutos depois, dois homens de bata branca vêm ter comigo, dizendo-me para os acompanhar. No corredor longo, de um lado existem janelas, do outro lado portas pintadas de branco. Paramos numa que tem como epígrafe a palavra QI, ironizo "Coeficiente de inteligência".
Entro, ou melhor, forçam a minha entrada. Esta sala é mais baixa e termina em duas portas, abrem uma e vê-se a escuridão. Não quero entrar. Forçam-me, resisto, chamam reforços, serão agora talvez quatro os actores tentando segurar-me e, além disso, aquele copo de água e a dor provocada pelo torcer do braço esquerdo onde me picaram obriga-me a entrar.
Fecham imediatamente a porta desta solitária, ironicamente chamada QI.
Não sei quanto tempo aqui estive, sei que gritei e bati à porta para ir à casa de banho, mas ninguém respondeu, mijei na parede como um cão. Talvez uma noite ou uma noite dia noite.
Dias depois, sou chamado ao escritório onde me dizem que vou entrar naquilo que pode ser descrito como terapia ocupacional. Uma bata branca acompanha-me ao local, um pequeno barracão com duas salas. A mais interessante está apinhada de pinturas e trabalhos gráficos, tanto homens como mulheres pintam, fazem tapetes ou colagens. No entanto, esta sala está lotada. A segunda sala mais parece uma oficina. As pessoas fazem malha, lêem o jornal, discutem politica e futebol, cosem livros, fazem pequenos sacos de papel ou caixas de cartão e vêem televisão.
Sento-me e trazem folhas, lápis, etc. Decido fazer um desenho descrevendo o que vejo, a janela à minha frente não tem gradeamento e, então, esta prisão torna-se menos real e mais humana.
Passado algum tempo, entra uma mulher com muitos cabelos grisalhos e algumas rugas e senta-se a meu lado. Cumprimentamo-nos e ela começa a interessar-se por mim, pergunta-me o nome, ela chama-se Mónica e tem quarenta e dois anos, gosta do meu desenho e diz que também desenha, tinha estado alguns anos em Belas Artes mas não tinha acabado. Mostra-me os seus desenhos: figurações muito simples de mulheres a caneta de feltro preta e em geral do tamanho de uma carta de poker. 
Uma mulher na idade dos vinte e tal anos, de cabelos castanhos, bata azul clara, entra indo falar com o guineense, responsável pela sala, e mais outros compinchas que lêem o jornal. Falam do bijou dela. Ela rí-se, eu também me rio e digo: "Ah... eu também gosto do bijou!" Venho a descobrir que tem um anel no dedo e que o bijou é o marido e, obviamente, não fica bem querer foder uma mulher casada e, ainda por cima, elegante. Ela ignora e diz que é hora do café. Dizem-me que se deve pedir ao responsável uma ficha vermelha de plástico, e saio com Mónica em direcção ao café.
Os empregados são simpáticos, existem batas brancas, azuis, masculinos e femininos, uma mesa de ping pong, quatro ou cinco mesas, o café é uma merda.
Sentamo-nos e começamos a falar enquanto fumamos.
Aborda-se os livros e os melhores autores e, já não sei porquê, digo-lhe que o meu escritor favorito é o Jean Genet. Ela responde instintivamente com uma expressão de espanto ou choque mas sem repulsa: "Sim, a prisão é uma grande escola!" É o suficiente para já a considerar uma amiga, afinal é a minha terceira amiga que conhece ou já leu Genet. Fala-me que é dependente de um fármaco líquido chamado Haldol, que lhe resolve um problema de saúde relacionado com ossos ou rigidez ou tremores do corpo. Diz também que não se considera uma condenada pois apenas vem todos os dias à terapia ocupacional porque quer, além disso o estado paga-lhe as injecções uma ou duas vezes por semana e ainda uma pequena pensão para a renda.
À noite antes de adormecer, esta conversa suscita-me questões metafísicas: é claro que é uma condenada, ela sabe-o, afinal está dependente para toda a vida de uma droga; porque são as pessoas boas ou as que fazem algo de humilde e interessante, aquelas que sofrem e vivem na miséria e morrem?, a gente olha para o mundo e só vê corruptos no poder ganhando bons salários, ajudas de custo e motorista do estado, falando merda ou respondendo evasivamente em talk-shows e etc, bem... vocês conhecem a história.
O dia é uma rotina e todas as rotinas são maçadoras. Acorda-se às oito, toma-se banho, come-se o pequeno almoço, vai-se buscar o tabaco guardado no escritório, alguns vão à terapia ocupacional, lê-se o jornal, dorme-se encostado ao radiador térmico, almoça-se, vai-se buscar lume para acender os cigarros, joga-se cartas ou dominó, vê-se televisão, alguns vão à terapia ocupacional, fuma-se cigarros, fala-se, dorme-se, janta-se às seis e vai-se para a cama às nove após se entregar o tabaco e sermos interrogados sobre os isqueiros que são proibidos.
Um dia, um senhor distinto por volta dos cinquenta anos aparece bem vestido com um relógio de ouro, senta-se, puxa de um cigarro, fala calmamente parecendo reflectir as palavras; dias mais tarde, tenta pegar fogo a si próprio na cama; outro dia, oferece o relógio de ouro.
Um dia durante a tarde na terapia ocupacional, faço um desenho do qual não gosto e que Mónica acha interessante. Resolvo ir fumar um cigarro à porta do barracão. Senta-se a meu lado um rapaz da minha idade que se identifica como António. Fala-me do tio que está preso por tráfico, fala-me que tem um esquema para arranjar ganza, é-lhe permitido sair durante uma hora todos os dias. Não sei porque aborda este tema, talvez por eu fumar tabaco de enrolar, todas as pessoas acreditam que todas as pessoas que enrolam cigarros enrolam ganzas ou pior. Mesmo sabendo que é um risco, entrego-lhe quinhentos paus para a minha dose. 
É óbvio que tudo o que sei sobre o sistema prisional se torna claro quando ele só aparece no dia seguinte, parecendo ignorar o facto de eu lhe ter passado para as mãos quinhentos paus, aqui a ética não existe e nem se deve abordar o assunto. Mais tarde numa ida ao café a troco de uma ficha vermelha, ele aparece com um colega que despeja a sua razão em poucas palavras: "Estou aqui porque atrofiei com o teatro." António produz um charro, ou melhor, uma quase prisca, dou duas passas que não me batem, é obviamente mais um truque psicológico, primeiro roubei-te, agora faço passar-te por lorpa. Digo que me bateu.
Ao fim de três semanas, dizem-me alegres, com um sorriso nos lábios, que vou sair livre no fim da semana.
Na sexta-feira há tarde, despeço-me de Mónica, ela dá-me um dos seus desenhos esculturais e eu tento dar-lhe o meu melhor desenho, aquele que tinha feito no primeiro dia, mas o responsável impede dizendo que tudo o que eu fiz durante a terapia ocupacional ficará arquivado para futura análise por parte dos psicólogos da instituição.
Vamos fumar um cigarro. Ela menciona algo saído da boca de Mário de Sá-Carneiro como "se quiseres podes vir às quintas-feiras...", sinto-me perto dela, ternamente perto dela, beijamo-nos na cara e dizemos adeus.
Assim, ao fim de três semanas sou libertado de uma sentença de um ano, sem nunca me terem dito o porquê de ter estado dentro. Cansaram-se talvez de procurar debaixo da cama e decidiram enviar o rapazinho embora. O mundo será sempre feio enquanto for habitado por humanos e as utopias foram escritas por extraterrestres.
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Claudio Mur 
em ''Anybody here who isn't paranoid must be crazy''


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