segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

ZMB -- IRABCDJOL XIV, parte1 (film track)


Film track for the first part of musical album IRABCDJOL XIV by ZMB Sound and image by ZMB Samples featured and thanks to Shivana Ribeiro and Júlio Allen Vidal Two poems by Manuel de Castro are read here in this album. Track 01: O açúcar é um doce veneno Track 02: As borboletas são Track 03: Regresso a 31:10 Track 04: Manuel de Castro na estação Track 05: Ameixa virgem do avesso Track 06: Sonho de flauta distante Track 07: Fica com a tua riqueza Track 08: Aleluia Track 09: Mãe Linda remix Track 10: O meu Paris Texas Track 11: A reconhecer pelos notários Track 12: Mãe Linda Soon this album will be listenable and available for download under a Creative Commons License on archive dot org

domingo, 15 de dezembro de 2024

Primária

Primária

aos domingos de madrugada nas cidades quase desertas, encanta-me escrever à mão, nos bancos de jardim, cartas a pessoas muito chegadas que estejam longe ou eu não veja há imenso tempo, em sebentas rotas, sobre o joelho, com as folhas a enervar-se com o vento, mas tem de ser no princípio do outono, em clima ameno, a lápis que o merceeiro usava na orelha, afiado com a faca de trazer no bolso ou o velho apara à manivela, o cheiro das aparas a confundir-se com a terra seca regada pela primeira chuva de setembro, cães meigos à solta, uma ave ou outra, uma carta sem ter nada de antigo ou vanguarda, urgente ou lento para dizer, só a memória de uma imagem mágica de estimação, de uma cor ou de um sonho, de uma pequena história, que sem ter história, anda à pendura no comboio de corda, entra e sai em andamento de um coração, nostalgia sem a qual nenhum futuro terá passado, melancolia sem a qual nenhum presente será moderno. 

Joaquim Castro Caldas
Pagina 187 de Intérprete da vontade do pássaro 
Edição Exclamação

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

E a verdade é que a aventura não tem preço

 ''

Ah! Ainda as estou a ver, essas queridas e boas senhoras, exactamente como há doze anos, quando me sentei à mesa delas, a discursar sobre os caminhos que os meus pés percorriam, pondo de lado os seus conselhos amáveis, como bom malandro, e encantando-as não apenas com as minhas aventuras pessoais, mas com as aventuras de todos os tipos com quem me cruzara ou trocara confidências. Apropriei-me de todas essas aventuras; e se as solteironas fossem menos confiantes e inocentes, ter-lhes-ia sido fácil pôr em xeque a minha cronologia. Sim, e depois? Foi uma maneira de retribuir as muitas chávenas de café, ovos e dentadas de torrada. Ficou tudo pago pelo justo valor. Diverti-as pela medida grande. Só o ter-me sentado à mesa delas já lhes soube a aventura, e a verdade é que a aventura não tem preço.

''

Jack London

em «Vagabundos cruzando a noite», página 62

tradução de Ana Barradas

Edição Maldoror


domingo, 8 de dezembro de 2024

Regar a planta ou ser um planticida? Eis a questão

 Hoje, ao chegar a casa com o pão fresco, encontrei o meu pai na cozinha.

Pai, o patrão é um cómico. Ontem, eram sete menos cinco, ia na rua a chegar ao Tijuana. Vi as persianas corridas, vi a dona Alexandra junto à porta da rua a deixar lá um balde e a entrar, vi as luzes do letreiro já acesas. Cheguei à porta de vidro na rua com a intenção de ligar o interruptor que controla a abertura desta porta. Cheguei e vi o patrão que mal me viu disse: sr. Rogério!, só agora é que chega? Pois chega a tempo de se explicar. Eu fico logo transtornado e tiro no mesmo instante o espertafone do bolso e digo: são sete horas, sr. A. Ele, em tom acusador, diz: vai ter de se explicar de um crime. Mais transtornado fiquei, fiquei a pensar «o que é que se terá passado este tempo em que estive ausente...»

E, pai, o que era? Era a planta, que está ao cimo dos três degraus de mármore junto à porta com a fechadura electrónica. A planta secou! O patrão mostrou-me o balde cheio de terra e cascalho e disse: eu e a dona Alexandra tirámos a planta do vaso, a água já estava choca. Você afogou a planta. Olhei para o vaso e, interiormente, suspirei de alívio, afinal... não morrera ninguém na minha ausência. Disse ao sr. A.: vou levar o balde ao contentor. Ele disse: eu vou consigo e levo estas garrafas. Eu virei-me para ele e disse: sr. A, agora o senhor assustou-me, pensei que tinha acontecido uma desgraça. Disse-o quase a sorrir, pai, disse-o aliviado. Foi assim:

Eu, agora que tenho de fazer apenas metade do serviço que me foi destinado fazer quando fui contratado, fui mandatado em Abril para regar a planta, nem sei o nome dela e eu não sou jardineiro. A planta é um tronco claro de trinta, quarenta centímetros donde no cimo saem umas folhas finas e longas que caem ao longo do tronco e estava dentro de um pequeno vaso com terra dentro de um grande jarrão cheio de cascalho. Mas não se via o vaso com a terra, só se via o cascalho e o tronco. E eu fui regando a planta, a cada três dias ia deitando meia garrafa de água no jarro junto ao tronco. O sr. A. ao longo dos meses ia ajuizando e ia dizendo: está bonita a planta, está viçosa. Mas no último mês, a dona Alexandra reparou que o jarrão estava cheio de água e começou a ver-se que as folhas estavam a secar, disseram-me para deixar de a regar. 

Ontem, durante a tarde e como é habitual, o patrão folga do supermercado e passa o tempo no hotel até eu chegar e ocupa-se de alguns pormenores. Pai, ele é um ano mais novo que tu e é ele que abre as tampas das fossas e se mete lá dentro com uma vara de arame e eu ou a dona Alexandra a deitar água com a mangueira lá para dentro para ele desentupir os esgotos. Pai, o patrão trabalha. Além disso, sempre foi correcto para mim. Por isso, alarmou-me. Foi teatral. Hoje, ao contar-te isto, dá-me vontade de rir. 

E agora, em vez da planta está lá uma artificial.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

domingo, 1 de dezembro de 2024

Nessa comunidade em que ninguém pensava em se promover, em que havia falta de tudo, mas sem privilégio nem lamber de botas

 '

O ponto essencial é que, durante todo aquele tempo, estive isolado -- porque na frente estávamos quase completamente isolados do mundo exterior; até mesmo do que estava a acontecer em Barcelona não tínhamos mais do que uma pálida ideia -- no meio de pessoas que, a traço grosso, mas não demasiado longe da verdade, poderiam ser definidas como revolucionárias. Tal era o resultado do sistema de milícias, que na frente de Aragão não sofreu alterações radicais até cerca de Junh de 1937. As milícias de trabalhadores, baseadas nos sindicatos e cada uma delas integrada por gente que tinha aproximadamente as mesmas opiniões políticas, tinham por efeito canalizar para um mesmo lugar todo o sentmento mais revolucionário do país. Eu fora parar, mais ou menos por acaso, à única comunidade de certa dimensão da Europa Ocidental em que a consciência política e a recusa de acreditar no capitalismo eram mais normais do que o contrário. Ali, em Aragão, eu estava entre dezenas de milhar de pessoas, princpalmente, se bem que não na totalidade, cuja origem era a classe trabalhadora, que viviam ao mesmo nível e conviviam em pé de igualdade. A igualdade era completa em teoria e até na prática não estava muito longe de o ser. Em certo sentido, pode dizer-se ser verdade que ali se experimentava um antegosto do socialismo, pelo que pretendo dizer que a atmosfera mental que prevalecia era o socialismo. Muitas das motivações normais da vida civilizada -- snobismo, ganhar dinheiro, medo do patrão, etc. -- tinham pura e simplesmente deixado de existir. A habitual divisão da sociedade em classes desaparecera numa medida que é quase impensável no ar contaminado pelo dinheiro que se respira em Inglaterra; ali, éramos só os camponeses e nós, e ninguém era senhor que quem quer que fosse. Semelhante estado de coisas não podia, evidentemente, durar. Foi simplesmente uma fase temporárria e local num enorme jogo que se joga em toda a superfície da terra. Mas durou o suficiente para fazer sentir os seus efeitos sobre quem o tenha experimentado. Por muito que amaldiçoássemos nesse tempo, dar-nos-íamos depois conta de termos estado em contacto com qualquer coisa de estranho e precioso. Estivéramos numa comunidade em que a esperança era mais normal do que a apatia ou o cinismo, em que a palavra "camarada" significava camaradagem e não, como na maior parte dos países, uma impostura. Respirávamos o ar da igualdade. Estou perfeitamente consciente de que está hoje na moda negar que o socialismo tenha seja o que for que ver com a igualdade. Em todos os países do mundo, uma enorme tribo de escribas partidários e pequenos professores untuosos afadiga-se a "provar" que o socialismo não é mais do que um capitalismo de Estado planificado que deixa intacta a motivação do lucro. Mas, felizmente, existe uma visão do socialismo muito diferente. O que atrai os homens comuns para o socialismo e os faz quererem arriscar a pele por ele, a "mística" do socialismo, é a ideia de igualdade; para a grande maioria das pessoas, o socialismo ou quer dizer uma sociedade sem classes, ou não quer dizer coisa nenhuma. E foi por isso que os poucos meses que passei na milícia contaram tanto para mim. Porque as milícias espanholas, enquanto duraram, foram uma espécie de microcosmos de uma sociedade sem classes. Nessa comunidade em que ninguém pensava em se promover, em que havia falta de tudo, mas sem privilégio nem lamber de botas, talvez tivéssemos uma antecipação crua do que poderá ser a fase inicial do socialismo. E isso, bem vistas as coisa, em vez de me desiludir, atraiu-me profundamente. Teve por efeito tornar o meu desejo de ver instaurar-se o socialismo muito mais real do que antes. Em parte, talvez isso se devesse à boa sorte de me encontrar entre espanhóis, que, com a sua decência inata e o seu pendor anarquista sempre presente, que, em tendo ocasião para tanto, tornariam toleráveis até mesmo o período inicial do socialismo.

'


George Orwell

em «Homenagem à Catalunha» páginas 83 - 85

tradução de Miguel Serras Pereira

edição Relógio d'Água


sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Crítica literária

 Da minha prima hoje pelo whatsapp, referindo-se ao livro Várius: Contos Morais

:

«Tu quiseste que o mundo desse cabo de ti»

Eu sorri concordando.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

domingo, 17 de novembro de 2024

Notícia cusca edificante

Hoje Domingo dia da desgraça e do descanso, depois de ir comprar nove pães, um picolé de litro tutifruti e um molho de alface d'ontem porque hoje não há frescos frescos, fui tomar café e li duas notícias:

1-- mais um ataque dos colonos israelitas na Cisjordânia.
2-- o Marco Paulo deixou 7 casas ao compadre lol e ao afilhado e nada à família biológica. Nenhuma das casas é em Évora,  distrito onde nasceu o cantor e onde nada tem, mas a autarquia pretende fazer um museu Marco Paulo para celebrar o homem da terra.

Pedido singelo de eu que agora escrevinho: para quando um Museu do Emplastro?


domingo, 10 de novembro de 2024

O elefante

 A Teodora sentia-se muito bem instalada no salão restaurnte do hotel de luxo. A Elli, de quem aquela fazia as vezes de elefante, escrevia cartas, onde contava que estava a ter uma vida regalada.

As criadas do restaurante deitavam a sopa nos pratos.

Isselstein e Hopfner surgiram aos pulos e a conversa animou; tenho tão pouca capacidade na arte de me saber expressar como um miúdo!

Ão-ão! Quem fez este barulho?

O nosso Hopfner, que deixava o olhar deslizar em torno da silhueta de Teodora.

Esta estremeceu, mas, na sua qualidade de elefante, manteve-se provisoriamente em silêncio. Os elefantes têm a arte de estabelecer relações. Para si próprios não têm em mira nenhum objectivo. Teodora não passava de uma espécie de apêndice.

Voltemos então a Hopfner, que gostava de dizer: «Deus me livre!» E também aqui me assemelho mais uma vez a um miúdo, porque não domino a arte de imitar.

Os desejos de Isselstein centravam-se cada vez mais na Elli, a qual não estava a notar nada do interesse de Hopfner pelo elefante.

Panorâmica da discreta natureza alpina e um novo «ão-ão» de Hopfner.

A correspondência era cada vez mais animada.

«Porque é que não diz nada?», implorou Hopfner. O belo seio dela agitou-se. A incapacidade de fazer prosa elegante apresenta as suas desculpas.

Ele prosseguiu: «Será que acha impensável que a tomem a sério?»

«Tenho de me habituar primeiro a essa ideia.»

«Não suporto mais continuar a ficar privado de um sim dito por esses lábios tão queridos.»

Ela fixou nele o olhar; ele compreendeu a resposta.

Isselstein e Elli encontraram-se também um ao outro; os quatro regressaram ao local de onde haviam vindo.

O papá não queria nada com o Isselstein, estava a contar com o Hopfner, que lhe fez saber da sua predilecção pelos elefantes.

Wally, a mãe, achou propícia a ocasião para fazer sobressair o seu sobressalto. Elli defendeu com sucesso a causa do seu Isselstein. Teodora espantou-os a todos. Verificar que um fenómeno acessório pode ter quem o deseje era para todos uma novidade absoluta.

Os pais deram-se por satisfeitos. A Elli ficou abraçada ao seu eleito, que continuava, como dantes, a chamar-se Isselstein.

Hopfner não fez mais ouvir o seu «ão-ão» nem, também, o seu «Deus me livre!» Fez uma coisa muito mais significativa.

Declarou à Teodora: «Tu agora és minha, mas eu nem consigo ainda acreditar que isso é verdade.»

«Eu tão-pouco! Somos os dois muito parecidos nisso de não-conseguir-acreditar-ainda-que-tudo-isto-seja-possível.»

O Cupido aconselhou-os a beijarem-se.

Hopfner levou ainda algum tempo a fazer tentativas até que conseguiu executar a sua obra e ambos confundiram os seus hálitos em ternas audácias até que o menino à boca de cena fez correr o pano.



Robert Walser

página 116 - 117

em A Rosa

edição Relógio d'Água

tradução de Leopoldina Almeida



segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Adenda 05h33m

 


Adenda 05h33m: Ganhei uma adepta -- a dona Júlia. Ofereceu-me outro cigarro quando retornou da rua.

 

03-11-21 05h PM

Estou no Café Corim. Cheguei há meia hora. Pedi um café ao balcão e fui à casa de banho. Na volta, paguei e trouxe o café para a esplanada no exterior. Era para começar a escrever logo aquilo que tinha para escrever: o desejo que me surgiu durante e após o final do turno hoje às nove da manhã ao ter ido ao banco nos Aliados e chegado a casa às onze.

Era para desenvolver isto aqui no café logo quando cheguei mas apareceu o Zézinho, velho amigo da zona. Ele apertou-me a mão, convidei-o a sentar-se, ele puxou de uma carteira de cigarrilhas e acendeu uma e eu continuei o meu charro, trocámos os números de telefone e fizémo-nos amigos no facebook, dei-lhe as condolências pelo falecimento prematuro do seu filho de cinco anos, tinha uma doença degenerativa, disse-me que está de baixa psiquiátrica devido ao luto e que, apesar de essa baixa ser um esquema para se esquivar às convocatórias para emprego enviadas pelo Centro de Emprego, vai-se apresentar amanhã perto do hospital numa obra como servente. Foi outro nosso amigo, o Tintol, que lhe arranjou o trabalho. Por sinal, o Tintol começou a trabalhar nessa mesma obra há alguns dias, após se ter passado dos carretos há duas semanas na empresa onde estava efectivo, ele trabalhava na recolha do lixo há vários anos, esteve anos como temporário, a agência de trabalho mudava mas herdava o pedido da firma e ele todos os seis meses tinha o contrato renovado, depois mudou de firma e com a experiência adquirida ficou efectivo, Fartou-se, devido ao desleixo da gestão e da falta de consideração do encarregado. Teve duas semanas de folga para estroinice e alistou-se numa obra, gostou e convidou o Zézinho. Lá estarão eles os dois amanhã a botar brita às oito da manhã.

Disse ao Zé para dar o meu número ao Tintol e falei que também tinha arranjado um trabalho, indiquei-lhe o melhor horário para comunicarmos.
Um aparte: perguntei-lhe se o Tintol ainda dá na branca: ele era assim, putas e caneco, As putas ainda vá lá mas as duas coisas...

O Zé responde: eu nem sei, há tempos fizemos uma festinha, foram cem, duzentos euros numa hora, ele disse para eu não lhe ligar no fim do mês quando recebesse a féria.

Lembrei-me de uma outra história dele: comprar numa hora dez raspadinhas de vinte euros e não ter sucesso e depois ir ao Pereiró apanhar de carro uma prostituta a ele fiel e levá-la para o motel Havana e com ela passar a noite dormitando nas suas mamas e acordando para fumar crack. Quem não tem companhia em casa, quem como ele nunca teve sequer uma namorada ou mulher a quem não chamasse de cabra... estoura o salário numa noite de ilusão e depois fica a tenir até dia oito do mês seguinte.

Despedimo-nos finalmente e voltei a pegar na caneta para relatar. Posso agora voltar ao início do texto e dizer que a dona Júlia, ontem durante a noite, ofereceu-me dois cigarros como troco de eu lhe haver emprestado o isqueiro. Até falou que eu devia trabalhar num hotel de cinco estrelas. Esse olho azul é bonito, disse ela. Saiu várias vezes durante a noite. Na última e ao abrir-lhe a porta, ela tocou-me no peito e disse até logo. Fiquei a pensar nela: tem cabelo preto comprido e em carapinha, tens uns peitos fartos, é mais baixa que eu. Até logo.

Tive vontade de transar com ela e cheguei a imaginar como seria se um mero recepcionista pudesse envolver-se com a hóspede e seguir o até logo dela, como abordaria a Júlia para lhe dizer Quero lamber sua boceta, acho-te muito bonita. Mas depois pensei que não devo meter-me com as hóspedes. Tenho todos os motivos para refrear o meu desejo, poderia até ser despedido.

Pensando nisso tudo, vi-a voltar a entrar para o quarto às nove e pouco para o quarto, tinha comprado um pequeno vaso com uma flor.

Cheguei a casa e bati uma punheta. Era para imaginá-la roliça sobre mim mas para ser uma rapidinha recorri a um vídeo online, fi-lo com a ajuda de um expediente pornográfico e não com a privacidade de ela e eu na minha imaginação porque quis cortar o envolvimento e impedir o desejo de crescer. Ao recorrer à pornografia, satisfaço o desejo primário e mato o desejo privado pela dona Júlia.

Deste modo, conservarei o meu emprego.

E pensar que um dia destes ela me pediu um cigarro, deve ter-lhe cheirado bem. Tenho que ter cuidado onde fumo e tusso.

 

04-11-21

Estou de volta ao serviço. Pouco para fazer. Nenhum trabalho de lavandaria. Apenas montar uma mesa para dois pequenos-almoços: dois carpinteiros de cenografia que estão cá esta semana.

O sr. A. informou-me que a dona Júlia está no hospital. Diz: ela se se descuidar com a medicação...

E eu a pensar que ela era prostituta!

Tenho uma mente perversa, afinal ela é doente. subiu na minha consideração. Se já era bonita mesmo que fosse prostituta agora é-lo ainda mais sendo doente.

 

08-11-21

Taking a coffee ouvindo a Rádio Paralelo.

 

10-11-21 08h54m AM

Estou a cinco minutos mais a tolerância da chegada da minha substituta.

A dona Júlia deixou o quarto. Vieram cá ontem os filhos buscar as coisas delas. Disseram-me que está internada no hospital de Penafiel e que por lá deve continuar, Disseram os filhos: Ela sabia que podia vir a ser internada, até arrumou as coisas, só não compreendia que não devia deixar de tomar a medicação.

Eu disse: Isso às vezes é o modo de se vingar do mundo, mas claro, ela é a mais prejudicada

Para o seu quarto entrou um homem talvez da minha idade, alugou por uma semana, a família é do Viso, ele trabalha na Bélgica em pladur, tem um problema nos olhos, fumou no quarto, avisei-o que não o pode fazer.

Admiti às quatro da manhã um casal que já cá tinha estado há uma semana, também haviam fumado no quarto e até ganza talvez pois vi cigarros cortados dentro das gavetas quando fui levantar a roupa da cama quando eles se foram embora nessa noite. Pedi-lhes para não voltarem a fumar e até lhes disse do local nas traseiras onde podem fumar. Eles disseram que vinham para dormir, mas pediram comida pela aplicação no telemóvel.

No quarto 3 vive agora por três noites uma negra muito bonita de cabelo rapado, tem um filho de três ou quatro anos. Aqueci-lhe água para a papa do filho e levei-lha ao quarto. Não sei porquê mas ela perguntou-me se eu tinha filhos. Eu disse que não, que tê-los era uma grande responsabilidade. Ela diz que agora que se separou do pai do filho se sente culpada. Vai trabalhar para Aveiro nos próximos dias.

 

20-11-21 20h45

O bom de voltar para casa dos meus pais é passar a comer bem.

 


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Claudio Mur

domingo, 27 de outubro de 2024

Claudio Mur - Um retrato da falsa revolução

Um retrato da falsa revolução

A revolução disse que toda a gente seria livre de escolher e toda a gente aderiu. Disseram-se sociais
e comunitários e embarcaram no sonho de uma sociedade livre e de sucesso para todos os sócios e
tanto pelo menos como o nosso vizinho do lado.
Quem se revoltou? Todos o que nada tinham, os que tinham venderam se ainda puderam e fugiram
para gozar reformas no exílio. Deixou-se de ter como amigo o senhor fulano de tal pois este deixou
de ter um amigalhaço numa empresa exportadora para o verdadeiro mercado interno, as colónias.
Deixou-se de ter de fugir para um bidãovil, caso se tivesse um mau currículo ou não se tivesse o tal
amigalhaço, como alternativa à prisão ou à porta da igreja para turista visitar e fama de pedinte mal
educado vendendo o coto de miséria como mercadoria. Tudo porque a revolução disse que o estado,
ao se dissolver progressivamente, seria o sócio amigo em quem confiar e ninguém precisaria mais
de ser pedinte da corporação ou da igreja para o ser, em vez, do novo estado, o sonho prometido
para quem se revoltasse e aderisse à revolução social do cidadão. O estado refundado legislou que
no interesse do novo cidadão, ele, ainda pobre, perdesse a vergonha e se registasse no sistema com
o nome de 'vítima da sociedade' e se juntasse como 'voz da experiência' a uma nova associação, uma
nova casa, loja, lobbie, um novo partido, uma nova corporação que defendesse o sonho privado de
cada um: por decreto regulamentar, aspirar a transcender a natureza do ser humano e ser monarca
do seu próprio nariz e ser ainda reconhecido pela história como o Senhor Alguém Que Fez Obra,
aquele bem falante benfeitor de quem toda a gente fala e deseja vir a ser.
Chamaram-lhe o bolo social e disseram que, se bem integrados neste faroeste social regulamentado,
todos poderiam comer um pedaço de bolo se fizesse o compromisso. Todo o filiado subiu na escala
social trocando de posição conforme a conveniência e dizendo aos filhos: estuda para seres um
senhor porque eu mato-me para te dar um futuro. Se eras amigo levaste uma palmadinha nas costas
e a caridade ocasional de um cheque ao fim do mês. Se não eras amigo perguntaram pelo currículo
e fizeram um contrato dando a ilusão que seria cumprido desde que te tornasses amigo, te
identificasses como escravo do bem comum da empresa, da nova família.
A ilusão do espírito livre, um amigo, um sócio em potência capaz de causar mudança para si e todos
os sócios, vendo a lei apenas como instrumento temporário de registo da sua liberdade, uma medida
para ser ultrapassada. Uma lei para todos mas com a honrosa excepção de cada um. Às vezes
repressora e tirana de quem não pensa de acordo, a ilusão de liberdade é perdida todos os dias no
modo como a nossa mente interpreta a revolução social e o nosso papel na revolução social em
romarias ao cemitério para ver os novos mortos, a nova tradição. Lembras-te de quando éramos
novos, do nosso papel na revolução? Éramos uns pobres salafrários, uns grandes malucos mas agora
depois de mortos somos burgueses cool. Já viste o tamanho do meu instrumento? A ilusão
continuou com o direito a poder participar na festa de adoração do sucesso, personificado no líder.
O sucesso mede-se em dinheiro, na quantidade de bolo redistribuído pelo líder, champanhe para os
accionistas e sopa para novos cartões de pobre, os que não têm amigos nem currículo à porta das
novas igrejas, agora reaccionariamente sociais apelando ao sentimento do turismo de mausoléu,
dizendo que jesus afinal era socialista e nunca gostou de mercadores nem capital.
E assim as corporações se renovaram e voltaram a ser o que sempre foram e pareceram. Estatuto,
hierarquia e repressão para quem não aceita ou não pode aceitar a opção do contrato social. As
coisas não mudaram assim tanto, não passou de uma falsificação organizada por iluminados a soldo
que souberam propagandear nas gentes a ilusão de o sol poder nascer igual e independente, de e
para todos, para que no fim cada um, depois do estatuto adquirido e da ruptura ideológica com o
clube de juventude rebelde, poder viver hoje de pantufas no sofá a reforma dourada mandando
trabalhar as gentes, ou seja, os outros porque, claro, eu trabalhei muito e a minha obra, o meu nome
fala por mim.
Mudaram apenas os nomes numa passeata evolutiva até à dissolução final do seu sentido de palavra,
do desejo de produto à produção do desejo até à propaganda do desejo. Afinal até deus não morreu
e tornou-se múltiplo e relativo, foram-lhe mudando o nome conforme a utilidade, de partido
bondoso e mártir a portador da luz e maldoso até à reforma compulsiva para taxa de juro e capital,
uma teo-social democracia do proletariado, para quem a palavra mudou de anarquistas do partido
social para fiéis colaboradores descartáveis vivendo instrumentalizados no substrato ilusório e
figurado da conveniência social com promessa de igualdade e fraternidade no acesso ao bolo, à
palavra que dá espírito matando a fome e o choro. Se fores meu amigo e contribuíres dou-te um
prato de sopa no meu palácio, senão meu amigo vai morrer profeta lá longe no paraíso! O papa
benze, o aiatola proscreve, buda contempla, brama é poeta e o imã vive em segredo enquanto deus
omnipotente manda o seu burocrata subir a taxa de juro da nação de poetas. Porque temos de nos
rir, parodiamos de vez em quando em animado congresso de sócios, ou assembleia com as gentes, a
realpolitik da ilusão, fantasia, farsa e propaganda e colamos ao cínico palavras como estúpido
porque não segue exactamente o rebanho, como mau e vingativo porque diz a sua verdade em
noites de facas longas, como mal educado, desavergonhado, impudente, obsceno, imoral porque diz
o que todo o rebanho pensa: a pornografia do poder corrompe.
Agora que o deus anarca do capital deixou cair a máscara e nos expulsou da casa que produzia o
bolo e deixou de distribuir por todo o fiel sócio contribuinte, nós, as gentes, começamos a descrer
do morto deus Sebastião, o tal que foi prometido. Porque esse partido, esse deus, esse mercado não
passa de um turista, um partido estrangeiro, esse que, a soldo e em saldo, comprou o bolo para
produzir sonhos para famílias que vivem lá no paraíso e ter ignorado as gentes de cá. O problema
não é ser um crápula mas não ser eu, err... quero dizer, ser um estranho sem cor e não deixar nada
para mim, ups... quer dizer, para a gente, para a nação, afinal de contas pago impostos para quem?
Não te tenho no meu bolso, deste-me uma facada, oh deus!, eu era teu amigo e, por menos, fiz a
guerra em teu nome. Por favor, não me abandones.
Como resposta os burocratas e polícias cumprem o protocolo e mandam educadamente deslocalizar
a peida para o paraíso porque aqui nunca seremos livres. O estado, a ordem é deus e deus é o
mercado e o mercado sou eu e eu sou o inferno. É trabalhar para comer enquanto há e não bufar ou
só bufar os que nunca trabalham, claro, a quem nos dá de comer por caridade.
Como contra-resposta os clubes e gentes cumprem o protocolo e continuam em passeio a vender a
ilusão de progresso, a democratização do deus capital, capital ao dispor de todo aquele que se quiser
juntar à revolta para ser visto como mártir, um jesuíta dito espírito livre e filantrópico que nos
salvará do inferno, eu, a associação igreja salva do fim do mundo e tu podes ser o meu escolhido.
Para compor a estrutura ditatorial do capital anarca neste cool jogo de futebol no fim do mundo
sobramos nós, os prisioneiros do verbo liberdade, as facas esquizóides do indivíduo e os gunas
dependentes do social. Sempre desconfiamos da promessa, a liberdade sempre foi ilusão, o estado
só serve para receber subsídio em troca de servidão. Sociedade sempre foi e sempre se transformará
em hierarquia e deus sempre foi intoxicação, orgasmo. Conforme a cor do clube ecuménico ou do
capital imperial, conhecemos a verdade com vários nomes mas a palavra com que nos definem
nunca mudará: maluco, imoral, traidor, terrorista, arma de arremesso, drógado. Somos tudo isso.
Dentro de nós um mundo e parte desse mundo é autoridade. Fora de nós existe o mundo-promessa e
esse mundo é autoridade, não nos reconhece direitos se não assinarmos o contrato de recolha de
informação ou provocação social e o máximo que oferece é indiferença bem educada. Para nós
nunca haverá solução porque recusamos que a nossa insurreição seja instrumentalizada embora,
claro, não recusemos o cheque. Não podemos mudar o mundo, apenas mudar o modo como vemos
o mundo e como ele nos influencia numa estratégia de redução de danos. O caos organiza-se
sempre que acendemos a luz do desejo numa outra que és tu. Amor, trabalho, conhecimento e a
responsabilidade de se pudermos não roubar a tv da mãe tanto melhor, deixemo-la rezar porque
rezar lhe dá força. O nosso deus não é jesus nem o capital de jesus, admitimos a nossa condição e
disfarçamo-lo de opção, procuramos o prazer e a experiência sensorial, falhamos perante a
impossibilidade do convívio sem hierarquia, identificamo-nos com uma emoção sempre que o
nosso polícia interno está de folga e às vezes choramos, somos humanos afinal e queremo-nos
imperfeitos, vivemos a possibilidade de eternidade do dia porque conhecemos a noite, intoxicamo-nos
com um copo de água, e gostaríamos, se pudéssemos, não escrever uma única linha e, quando a
hora chegasse, deixar apenas um corpo bonito sem história, sem efeitos colaterais, apenas pó e já
sem precisar da rehabilitação da laje. Tão válido como dizer sem a tua elegância: quem nunca te
tiver roubado um beijo que atire a primeira pedra.
- Morziinho, vais fazer o jantar?
- Oooó, eu queria ver o futebole...

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publicado no indymedia.pt
em 2012
por alturas do despejo da escola da Fontinha pela camara municipal do Porto


sábado, 19 de outubro de 2024

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Tuíte Salgado

Tuíte Salgado
Se a família do Ricardo Salgado se preocupasse com a saúde dele, teriam entrado no tribunal pela garagem.
Mas não, preferiram caminhar 100 metros por entre jornalistas e indignados para que todos os telespectadores vissem o estado dele, tivessem pena e dissessem: coitadinho, podia ser o meu pai, tem alzheimer, não se julga uma pessoa assim, deve ser ilibado. 
Também pode ser que o dr Ricardo Salgado tenha querido de livre vontade e consciência caminhar os cem metros obstáculos para afirmar a sua honra de impoluto bancário falsificando o seu estado de modo a ser considerado inimputável pelo tribunal e pela audiência.
Tudo para não pagar o que deve aos indignados e para que deixe aos seus filhos vip alguns francos suíços mais os dólares do Panamá e as propriedades no Brasil.

domingo, 13 de outubro de 2024

Most People Have Been Trained To Be Bored -- A Perfect Observer In Random Wounds


Solo project of Gustavo Costa:
composer, drummer and manager of the experimental music collective and association Sonoscopia in Porto, Portugal This 7" single is a split edition of Bor Land and Soopa from 2008
A side: The income of a government from all sources B side: Multiple choice of no truth

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

A mesma luta: isto é um negócio

Orwell era de esquerda e talvez fosse comunista mas não era um ortodoxo, denunciou o Estalinismo, lutou contra os fascistas em Espanha mas também não era anarquista, hoje talvez fosse adepto da corrente do marxismo crítico e do sentido de comunidade. Era um crítico da condição social, preocupava-se com os pobres. Viveu tempos de penúria e escreveu sobre isso e talvez a sua educação intelectual superior nunca fez com que ele desprezasse o pobre, sendo um pobre não disse mal de outro pobre, não se achou superior dizendo que o Outro não quer trabalhar e é um vagabundo, simplesmente retratou o modo como os vagabundos passam o dia e as noites.
O livro Na penúria em Paris e Londres permite fazer comparações com os dias de hoje,  um século depois:
Em Londres em 1930 a vagabundagem era proibida, as pessoas não podiam dormir nas ruas e quem não tivesse casa não podia ficar na cidade mais de um dia, tinham de andar de um lado para o outro, a pé. Ainda assim,  havia albergues de 5 em 5 km, e os vagabundos ou sem abrigo podiam pernoitar uma noite por mês em cada um deles, não pagavam nada e de manhã recebiam um pão e um chá inglês. Para quem podia pagar um mínimo havia pequenas pensões onde dormiam às vezes cinquenta pessoas,  as condições variavam de local para local.
Hoje em 2024, no Porto só há um albergue gratuito e tem lista de espera, ouvi dizer que a AMI também aluga divãs em camaratas por mais de 100€ por mês, o pobre entra às 17h e só volta a poder sair de manhã.
Conclusão: há um século era proibido ser sem abrigo mas havia albergues, hoje é tudo legal mas não há onde dormir e se se encontra um canto na rua ou debaixo de uma ponte, logo aparece a polícia municipal a chatear ou um fascista a bater.
Diz-me um hospede do Hotel Tijuana que o Moedas em Lisboa queria aumentar a taxa turística para 6€, no Porto brevemente vai aumentar para 3€. Isso significa que o casal do quarto 1 vai pagar por mês 42€ de taxa turística para poder usufruir de um quarto sem ar condicionado, na cave, só com wc e sem acesso a cozinha e sem pider fumar no quarto,  basicamente só para dormir,  ora 42€ a juntar aos 750€ de renda não deve sobrar muito para fazer qualquer outra coisa. 
- É claro sr Rogério,  que se pagar em numerário podemos esquecer a taxa.
E o hospede paga em numerário e o hotel não entrega a taxa. Outras vezes, pede-se ao hispede que pague a taxa em dinheiro explicando que o banco cobra uma comissão pelo pagamento em cartão e sabe, sr Rogério, o dinheiro não é para nós, temos de o entregar, e claro que o patrão se receber em dinheiro simplesmente não declara, ladrões da câmara,  ladrão do Estado, taxas e taxinhas, sempre a asfixiar o empresário, ora vamos lá baixar os impostos, o IRC, sr. Mintonegro ajude-me a não ir à falência, eu tanto posso vender o Tijuana a um holandês por milhão e meio como aumentar um piso ao edifício, diz o patrão. Vamos dar um benefício aos jovens para eles comprarem casa, benefício que sai do dinheiro de todos os contribuintes e acaba no bolso da imobiliária porque entretanto o preço do imóvel aumentou: senhorios, imobiliárias, hotéis, a mesma luta, a habitação como um negócio. 
Por isso, registo a leitura daquele esquerdalho no livro do Orwell que só trabalhava meio dia e se fazia despedir ao início da tarde no restaurante porque o patrão era por lei obrigado a pagar o dia inteiro. Por isso, escrevo que às vezes nos apetecesse dinamitar o local de trabalho e os patrões que não alugam a ciganos porque dizem que estes são ladrões e depois cobram tarifas à  porta mais caras do que pela Internet sabendo que pela Internet se paga uma comissão à agência,  querem lá saber se há pessoas que não têm onde dormir, sr Rogério,  isto é um negócio!
E o sr Rogério diz para ele próprio: hoje estamos cheios, não temos quartos, ide ser explorados noutro local, ide dar o dinheiro a outro patrão. 

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Divulgação: Ciclo de Cinema no Maldatesta, Porto em Outubro

 


No próximo dia 24 de Outubro, pelas 21h30, no Espaço Maldatesta (R. São Roque da Lameira, 2236), será exibido o filme “Silêncio”.

Esta sessão faz parte de um ciclo de cinema dedicado ao tema dos Sem-Abrigo, com o objetivo de sensibilizar o público para esta questão tão urgente e importante.

A Saber Compreender estará presente na roda de conversa.

Junte-se a nós para uma noite de reflexão e diálogo!



segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Tuíte Israel mostra que é um Estado acima da Lei

 Então Israel avisa o sul do Líbano de que têm de abandonar as suas casas porque vão ser bombardeados

e depois além de lhe bombardear as casas

bombardeia também as estradas por onde as pessoas foram obrigadas a fugir por causa dos bombardeios às suas casas.

Deu na tv, vi o buraco na fronteira, o jornalista relata: agora as pessoas fogem a pé.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Tuíte Cultura oficial do nojo

 Fiquei hoje a saber através da leitura da crónica da Ana Cristina Leonardo no jornal Público que

para comemorar os 500 anos de Camões saiu uma edição dos Lusíadas com prefácio e ilustrações de Valter Hugo Mãe.

Bravo! Fico à espera da edição dos poemas satíricos de Bocage com selfies de Pedro Mexia.

Isso é que continuaria a ser! A alta cultura da pátria e dos vendedores de promessas vampirizando os esqueletos.



quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Divulgação: Concerto de Fatima Miranda no Porto, dia 11 de Outubro

 https://www.culturaemexpansao.pt/sessao/fatima-miranda/

Em contraponto à invasão do digital, dos smartphonesApps, computadores e gadgets de que dependem a música eletrónica e a arte sonora, que quase sem intervenção do corpo e do gesto resolve concertos com facilidades tecnológicas, Living Room Room é um concerto-performance para voz solo, intimista e a cappella, em que se defende a presença e a contundência de UM CORPO sem fios. Músculos treinados sem mais nada, esculpindo o ar com uma voz prolongada, num registo de mais de quatro oitavas, usada como instrumento de sopro e percussão.


Em palco, uma única voz em simbiose com uma significativa componente poética, gestual, visual, dramática e humorística toca-nos até ao âmago.


A dramaturgia de Living Room Room evolui do contemplativo, melancólico, dramático e ritualista para um ambiente de transe frenético, divertido e algo louco.


Living Room Room incentiva uma ESCUTA consciente e culmina com uma secção improvisada que interage com o público e com o silêncio sonoro do lugar, com a sua acústica, com A NOTA que é única em cada espaço, com o seu runrun, sempre único e imprevisível, cantando em diálogo com a arquitetura do lugar.


Filha de uma sensibilidade etnominimal, Fátima Miranda está sozinha em palco com os seus instrumentos habituais: a voz expandida, a herança do Oriente, o corpo, a onomatopeia, o humor, a repetição, o espaço-tempo. Com a sua inteligibilidade ininteligível, vira as costas à tirania dos cânones da beleza do canto e da palavra, e coloca o mundo sobre os seus ombros, entrando sem medo e sem receio na floresta de oralidades que ainda o povoam, carregadas de memórias fonéticas, talvez anteriores à linguagem, evocativas de códigos de comunicação já extintos e que se aninham no inconsciente coletivo.


Em contraste com o que habitualmente se entende por cultura, a poética inclassificável de Miranda atinge uma dimensão de modernidade no sentido do que é sempre contemporâneo, entendido como civilização, isto é, como aquela parte mínima utilizável do imenso mundo cultural.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Não foi o dinheiro

 Aqui amigo te digo: quando nos conhecemos tu eras o ru vagaba e agora tu és o ru trabalhador

E tu amiga eras rica e agora és pobre

E você continua a gostar de mim

E tu de mim não sabe porquê?

Explica para eles amigo!

É porque quando te conheci não fui atrás do teu dinheiro

É, isso é verdade eu cheguei a pedir-te emprestado

E por isso não seria agora que não tens dinheiro que não iria gostar de ti, não foi o dinheiro que nos aproximou

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Kiss our ass goodbye


Desenho marado de ZMB
a partir de capa de lp de Sun Ra da autoria de
Leroy Butler

Hey you motherfucker, don't you know?
If you push that button Your ass got to go!

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Desatámos a rir e então sentimo-nos felizes.

 "

Aproximava-me da curva da via e ao longe já se viam, apontando para o céu, os doze cascos dos cavalos mortos, como colunas da cripta de Stará Boleslav. Pensei na Mása, no nosso primeiro encontro, quando eu ainda trabalhava com o encarregado da linha, que nos deu dois baldes com tinta vermelha e nos mandou pintar a vedação à volta das oficinas. A Mása, tal como eu, começara a trabalhar nos caminhos-de-ferro, ficámos frente a frente, com a alta vedação de arame farpado entre nós, cada um com o seu pincel e, em frente um do outro, enfiávamos o pincel por entre o arame e pintávamos a vedação, cada um do seu lado, sempre cara contra cara, ao todo eram quatro quilómetros de vedação; passámos cinco meses assim, um em frente do outro, e eu e a Mása contávamos tudo um ao outro, mas havia sempre entre nós a vedação. Um belo dia, já nós tínhamos pintado dois quilómetros de vedação, estava eu a pintar o arame ao nível da boca da Mása com aquela tinta vermelha, disse-lhe que gostava dela, e ela, do lado de lá, também a pintar o arame, disse que também gostava de mim... e olhou-me nos olhos, e como estávamos numa vala entre ervas altas de caniço, estendi os lábios e, através daquele arame farpado pintado de fresco, beijámo-nos, e quando abrímos os olhos, ela tinha um pequeno losango vermelho na boca, e eu também; desatámos a rir e então sentimo-nos felizes.

"

Bohumil Hrabal em «Comboios rigorosamente vigiados», páginas 45 - 45

tradução de Anna Almeida

edição Antígona

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Dia Aberto do Jovem Empreendedor

Dizem que temos a geração mais bem preparada de sempre e também

o melhor presidente do governo judicial desde que expulsamos, 

primeiro, dona Teresa e, depois, os terroristas que nos invadiram com

arroz, azeite e laranjas


«Dia Aberto do Jovem Empreendedor»

óleo sobre papel tamanho A2

2024 ZMB


desenho a lápis de grafite e marcador de preto permanente 
sobre papel tamanho A4, 2024 


aguarela a caneta bic azul e tinta de aguarela sobre

papel tamanho A3, 2024


segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Pega num sininho e tilinta, pergunta: ouve assim? e assim?

 Lembro-me como se fosse hoje. Em 2014 começei a ouvir mal, um amigo disse: metes umas gotas e a cera puf!, mas eu quis ouvir a opinião de um especialista e fui ao médico, ou melhor, fui à urgência do hospital Santo António, esperei a minha vez, queixei-me e na triagem mandaram-me seguir para o consultório do otórrino, sentei-me no sofá à espera que o otorrino chamasse. Meia-hora depois, vejo passar uma bata branca e entrar na sala do otorrino e depois outra. Dez minutos mais tarde, chamam-me e eu entro e vejo que a bata branca que entrara era a otorrina que se tinha ausentado e agora está sentada na secretária em frente ao computador, a segunda bata branca diz-me para ir para um banco onde me vê a cera dos ouvidos e pega num sininho e tilinta, pergunta: ouve assim? e assim?, está bem, pode-se levantar. Saio do consultório hospitalar sem ouvir mas a médica nada fez nem a assistente dela. 

Resolvi a minha surdez quase dez anos depois quando resolvi ir ao centro de enfermagem local à minha residência actual. O enfermeiro viu que eu tinha cera, receitou-me umas gotas para colocar durante cinco dias e marcou consulta para a semana seguinte, quando me lavou o ouvido e tirou uma pedra de cera enorme do ouvido direito, tão grande que passei a ouvir em stereo e as vozes pareciam amplificadas. Paguei oito euros pelo serviço. No Santo António não paguei nada mas também não me puseram ouvir.

A médica e a assistente no hospital santo antónio não lavam orelhas e às vezes nem sequer estão no consultório. Mas o meu pai que tem cartão de saúde já foi ao hospital da trofa ter as orelhas lavadas por um médico.

Há aqui alguma coisa que não bate certo.

Hoje a minha mãe tinha uma consulta de diabetes no centro de saúde com a médica de família, a minha mãe já teve um avc e vários mini avcs que só foram posteriormente detectados e é crónica, toma medicação mas ainda não precisa de insulina, ultimamente tem tido os níveis de diabetes muito baixos e talvez fosse preciso rever a medicação. Mas isso não aconteceu porque a enfermeira não estava de serviço e a médica não pode fazer a picada no dedo para lhe medir os diabetes e eventualmente ajustar a medicação, então a minha mãe perdeu o seu tempo e ficou na mesma. 

E eu pergunto: se o meu pai não é médico nem enfermeiro e lhe pode medir os diabetes em casa, a médica não o pode fazer? Não é da sua competência? É da competência do enfermeiro? E se a mesma médica prestar serviço num hospital privado já se pode dar ao trabalho de medir os diabetes à minha mãe?


É claro que haverá certamente uma conferência de imprensa onde serão apontados responsáveis, demitidos e anunciado um inquérito de averiguações com resultados previstos para um século que há-de vir. Temo é que a minha mãe já lá não chegue.

FILHOS DA PUTA!



quarta-feira, 11 de setembro de 2024

O escravo voluntário diz: este trabalho caiu do céu

 

Segunda noite de folga hoje. significa que completei duas semanas de trabalho. Está a correr bem. Sinto-me adaptado às tarefas e às colegas. Além de mim e o chefe-patrão só tenho colegas mulheres. Logo não há invejas nem competição destrutiva. Todos nos ajudamos uns aos outros. dizem-me que trabalho muitas horas por um salário pequeno mas eu não acho que seja um mau emprego. E se trabalhar para um patrão nos coloca na situação de escravo, eu, neste momento considero-me um escravo voluntário. Porque há dez anos que não tinha um patrão e um salário todos os meses, porque gosto deste trabalho e é totalmente diferente de tudo o resto que já fiz. Há dez anos seria incapaz de o executar porque exige boa aparência, calma nas palavras e sorriso para com quem falamos.

Afinal: entro às nove da noite recebendo as indicações do trabalho para a noite. A minha principal função é receber os novos hóspedes, registá-los no checkin e encaminhá-los para um quarto dando-lhes dormida por uma ou várias noites, a troco de um valor acrescido da taxa turística que segue para o município. Esta é a minha principal função: ser recepcionista de hotel, hostel, residencial, pensão blablabla mas... se fosse só esta as minhas tarefas, seria tudo uma grande seca e o tempo de permanência no local de trabalho demoraria a passar. Por isso, tenho outras tarefas e consistem em ajudar a completar o trabalho das minhas colegas do turno de dia: levantar lençóis das camas e toalhas dos quartos de banho e pôr a lavar a sessenta graus na máquina, depois estender na corda se der tempo de ela secar durante a noite ou então pôr a secar na máquina no programa Algodão. A seguir, dobrar e arrumar no armário. Esta é outra tarefa: tratar da roupa de quarto durante a noite para que de manhã seja só preciso a colega passar a ferro tendo já a roupa preparada. Outra tarefa está relacionada com a alimentação dos hóspedes, alguns pedem pequeno-almoço e eu tenho de levantar a louça lavada e arrumá-la, preparar as mesas para o pequeno-almoço que às vezes ainda cai no meu horário visto ser entre as sete e trinta até às dez da manhã, chego ainda a serví-lo. Aí, tenho de aquecer leite, torrar pão, descongelar as manteigas, preparar os pratos de queijo e fiambre.

Há dias, serví-o a um senhor trabalhador das obras às sete da manhã, recordo: meia-de-leite clarinha, um pão com queijo e fiambre e um copo com água para tomar a medicação. Frugal, não é?, sim, porque são reservas de preço económico. Mas para hóspedes de reservas online é diferente: para cada pessoa vai para a mesa um croissant, dois pães, quatro fatias de queijo e quatro de fiambre, meias-de-leite ou café solo, ainda chá se for pedido e se houver ninos a desayunar, o chefe às seis da manhã compra para eles um bolinho quentinho acabado de sair do forno da pastelaria e eu orgulhoso da casa direi em portunhol: esto és por la ninha.

Dito isto, este é o meu serviço. Termina quando a dona-chefa chega às nove da manhã e eu acabei de ir despejar o lixo e lhe passo as contas da caixa que o chefe-patrão conferiu comigo duas horas antes.

Ao fim de duas semanas de trabalho, reparo que termino as tarefas por volta da meia-noite ou uma e que até quase às seis da manhã posso repousar ou mesmo dormir. Claro que não é um sono dos justos pois não descanso numa cama e estou sempre atento ou sou acordado pela campainha tocada por um hóspede ou um potencial novo hóspede. Outras vezes, é o telefone que toca. É por isso um sonus interruptus em que acordo estremunhado do sofá às vezes a pensar se fiz isto ou aquilo bem. Mas o certo é que descanso durante as doze horas de trabalho quase quatro horas, e quase que não durmo ou tenho dificuldade em dormir quando chego de manhã a casa.

Logo, consigo ganhar dinheiro aproveitando a noite, descanso um pouco durante a noite e de manhã e, depois do almoço, ainda tenho tempo de continuar com a minha pintura e o que mais houver. Este trabalho caiu do céu.

Ontem, virei-me para o meu pai e disse: Pai, é a diferença entre trabalhar porque se precisa de ganhar dinheiro e trabalhar por paixão e amor à camisola, vá!, quando a gente gosta verdadeiramente do que faz e não o faz odiando a necessidade de o fazer, o tempo corre muito mais rápido e os milagres podem acontecer.

Falo-lhe da minha amiga que toma conta de uma senhora de oitenta e tal anos. Ganha mal e porcamente mas ama o seu trabalho e faz milagres. Conseguiu pôr a idosa que habitualmente passa os dias entre a cama e cadeira de rodas... conseguiu pô-la a andar pelo próprio pé. Apenas com o carinho. Shivana ama quem cuida. A idosa vivia deprimida e Shivana com o carinho e o incentivo das suas palavras, devolveram a coragem e a vontade à senhora. Tenho provas: mostrou-me um vídeo gravado com o espertafone, mostrando a senhora a andar, mostrando a senhora até a desapertar os botões da camisa. Ela já estava dependente de tudo, da cuidadora para a higiene e alimentação e dos fármacos para a alegria de viver. Hoje com o cuidar da Shivana, ganhou autonomia e vontade. Shivana fez mais que qualquer outra auxiliar de geriatria. Shivana vai ser aumentada e vai ser gabada no psiquiatra, na fisioterapia e na família da idosa. Shivana vai ser aumentada e a sua perna vai ficar grande, ou como ela diz corrigindo: vou ficar cheia de perna.

 

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Como a cegonha com o pescoço dentro do saco das compras.

 A minha amiga e eu, nós temos uma piada interna que consiste em chamar de inteligente alguém que faz algo que nós consideramos errado ou absurdo e que não podemos mudar. Então, a rir dizemos: Ená, saíste-me cá um inteligente!

Foi então natural que eu tivesse respondido do fundo do coração à dona Alexandra ontem, quando ela me perguntou se tinha compreendido todos os recados e eu disse que sim e ela retorquiu: Também você é inteligente, não é?, que inteligente é o que costuma chamar aos ótarios. Disse-o olhando para a agenda na secretária e depois ao olhar para ela, vi-lhe a cara de desagrado como se a tivesse ofendido, e ela retorquiu: Não se considera inteligente?

-- Não, considero-me mediano, há pessoas muito mais inteligentes que eu.

-- Também há muitos burros.

-- Sim, mas eu não sou nem melhor nem pior, sou mediano.

***

Inseri este breve apontamento em cima e mal sabia eu quando ele aconteceu que se haveria de ligar intuitivamente com o livro de ensaios de Benjamim Fondane que a VS editou.

Ainda só li o prefácio e o ensaio A segunda-feira existencial, mas li-os duas vezes para tentar e conseguir compreender o pensamento de Fondane bem como para o enquadrar em mim, para ver como ele justifica e predetermina as minhas acções, para descobrir a genealogia que adopto.

Ele diz completando Andre Gide: Não tem graça jogar num mundo onde toda a gente faz batota, começando por mim próprio.

Ele diz comentando Rimbaud: Se todos são uns porcos, eu que afirmo isto sou um porco também.

Diz que todo o Mal no Mundo: a guerra, a fome, etc, vem do facto de uns se acharem melhores do que os outros e com, é certo, esforço, propaganda, arregimentarem multidões em torno de uma ideia superior para eles e alguns dos seus, condenando todos os restantes ao sofrimento e ao estranhamento, dividindo o mundo em Uns e Outros, Bem e Mal, quando no fundo cada lado pensa o mesmo e quer aniquilar o outro querendo ser só Um. A bem de uma Totalidade aniquilam a Diferença.

Democracia e Ditadura tentam anular-se uma à outra, tornar-se uma só. E no fim, levam à destruição do mundo. E para o homem comum, tudo isto é incompreensível, não se compreende com em nome de um Bem comum superior para toda a Humanidade, os dois lados se matem um ao outro, e milhões de cidadãos escravos ovelhas soldados novos e velhos homens mulheres e crianças lutem ingloriamente e morram por um ideal absurdo que deixaram de compreender.

Camus afirmava que era necessário nascer um Sísifo que fosse feliz, e que o trabalho absurdo de todos os dias fosse uma luta, fosse em si mesmo a finalidade, o objectivo e a razão de Ser, sendo esses os Valores num mundo desprezando A religião.

Hegel disse que as guerras eram necessárias e que mesmo cansados do trabalho, os camponeses conseguiam divertir-se ao Domingo e ser feliz, resignando-se ao mundo ser como é. 

Nietzche disse no amor fati, que devemos aceitar o absurdo do mundo como um acto de fé, irmos alegres para a fogueira.

Fondane também não apresenta soluções, diz apenas o óbvio: ele, tal como eu que escrevo, tal como todo o cidadão e não cidadão, tal como todo o político e aspirante a político, perdemos o direito à nossa responsabilidade, porque não temos a humildade de admitir que na maior parte das vezes erramos com consquências nefastas (Guerra, o Mal).

Fondane é nihilista e diz apocalipticamente que estamos nas mãos de Deus e que de nós será dado o testemunho de um grito, um poema, fé ou suicídio.

Não há mais esperança neste mundo. A maior parte da gente nem repara nisso, vai-se andando simplesmente, como a cegonha com o pescoço dentro do saco das compras.


segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Por isso, meus irmãos, uma vez que tendes de suar para nós podermos pagar as nossas viagens a Itália, suai e ide para o inferno

 ''

Penso que a tendência automática para perpetuar os trabalhos sem sentido se deve, no fundo, simplesmente ao medo que as massas populares inspiram. A plebe -- pensam uns -- e formada por uma espécie animal tão vil que se torna perigosa se tiver tempo para isso; o melhor é conservar os seus membros permanentemente ocupados, de modo a não terem ocasião para pensar. Qualquer rico capaz de um mínimo de honestidade, se o interrogarmos acerca da melhoria das condições do trabalho, dirá mais ou menos o seguinte:

«Sabemos que a pobreza não é agradável; de facto, trata-se de um mundo tão afastado do nosso que chegamos a ter um certo prazer quando pensamos no horror que é ser pobre. Mas não podem esperar que façamos seja o que for para modificar as coisas. Lamentamos as classes inferiores como temos pena de um gato tinhoso, mas lutaremos implacavelmente contra qualquer melhoria das suas condições de existência. Achamos que é muito mais seguro que as coisas continuem a ser como são. É uma situação que nos convém, e não vamos correr o risco de deixar os pobres com uma hora suplementar de liberdade por dia. Por isso, meus irmãos, uma vez que tendes de suar para nós podermos pagar as nossas viagens a Itália, suai e ide para o inferno.»

Esta atitude é característica, sobretudo, das pessoas inteligentes e mais ou menos ilustradas; encontraremos a argumentação acima exposta, com pequenas variantes, em centenas de ensaios. Acontece, por outro lado, que são muito poucas as pessoas instruídas que têm menos, por exemplo, do que quatrocentas libras anuais; naturalmente, por isso, é do lado dos ricos que essas pessoas tendem a colocar-se, imaginando que qualquer liberdade concedida aos pobres é uma ameaça à sua própria liberdade. Supondo que a única alternativa para o estado de coisas actual é não se sabe que sinistra utopia marxista, as pessoas cultas preferem que tudo continue na mesma. É provável que não gostem especialmente dos ricos, mas supõem que mesmo o mais vulgar dos ricos é um inimigo menos perigoso dos seus prazeres do que o pobre, e assim defendem aquele contra este. É o medo de uma plebe sobre a qual projectaram todos os perigos imagináveis a razão que torna quase todos os espíritos cultos conservadores nas suas ideias e atitudes.

''

George Orwell em

Na penúria em Paris e em Londres, páginas 111 - 112

Tradução de Miguel Serras Pereira

Edição Relógio d'água

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

domingo, 25 de agosto de 2024

Mimos para elisa

Mimos para elisa

elisa. elisa tem ancas gordas e beiços carnudos.
elisa gosta de telefonar ao noivo. sentada no so
fá, com o joãozinho à beira, marca o número e diz:
elisa sim meu bem. entretanto o joãozinho mete o
s dedos por baixo da saia de elisa, mete as mãos, 
mete os braços. elisa diz: sim meu bem. enquanto 
elisa se recosta, joãozinho mete a cabeça debai
xo das saias de elisa, e faz que sim, faz vivamen
te que sim, enquanto elisa diz: sim meu bem. sim.
estes telefonemas com o noivo são tão longos! se
pararam-se há pouco tempo. o noivo suplica: não 
chores elisa. não suspires. a separação não será 
eterna. elisa acalma-se. joãozinho sai cá para fo
ra. elisa chega-se muito a ele. joãozinho está ag
ora de pé. o noivo fala fala fala. pergunta: elisa 
já comeste os bombons todos que te mandei minha 
gulosa? elisa não responde. está com a boca cheia 
. mesmo na conchinha do ouvido, muito suavemente,
o novo chama-lhe gulosa. e outros mimos. outros. 

Alberto Pimenta 
em 
Obra quase incompleta 

Edição Fenda

sábado, 24 de agosto de 2024

Boliquei-me

 É claro que Rogério, depois de aos dezoito anos ter deixado Gloria Filho de Cisne pendurada na paragem do autocarro às três da manhã numa noite de greve dos motoristas em que os serviços mínimos dificilmente seriam cumpridos e seguido num uber chamado com a aplicação do telemóvel emprestado pelo pai, depois de aos vinte e cinco anos se ter formado em advocacia e haver conseguido tirar o estágio profissional com o alto patrocínio do homem do cadeirão seu primo na alta finança, depois de aos trinta anos ter conseguido apropriar-se com a ajuda dos ácaros das criptomoedas aconselhados pelo grande especialista em informática da marquise lisboeta de Boliquei-me das accões e títulos em caixa de várias nano e micro e mini e pequenas empresas e ter construído o seu império na área dos serviços, sentiu uma necessidade enorme de oferecer bolas de futebol e frigoríficos ao seus vizinhos, porque passou numa feira do livro e comprou um livro do Orwell onde ele passa fome vivendo num hotel com seis francos por dia há um século. Seis francos vezes trinta e três escudos do câmbio dá aproximadamente um euro hoje um século depois. Rógério foi eleito com aclamação popular.

Rogério hoje, tendo caído do cavalo e sendo um presidente destituído e reformado por invalidez, lembra o seu tempo há setenta anos quando o pai lhe pediu o telemóvel de volta e o pôs fora de casa porque a mãe da Glória não perdoou a afronta feita à filha e a enorme conta de prozacs e rapé de nariz usados na convalescença dela. O pai pensava à antiga e Rogério teve de se fazer à vida. Eis um primeiro relato do seu diário:

09-10-21,12h43 PM

Estou em casa. Já almocei. Aqueci no microondas um prato com arroz, massa em meia lua com sardinhas em molho de tomate refogado juntamente com finas fatias de alho, cebola, cenoura, azeite e pimentão vermelho. Já tomei café. antes de almoçar, lembrei-me de transcrever do caderno finado as duas anteriores e primeiríssimas entradas neste novo caderno.

Reparo que o facto narrado de não haver troco, uma moeda de cinquenta cêntimos, para a cerveja ser falso. Há de facto um estojo cor-de-laranja que contém o dinheiro em caixa das bebidas que estão no frigorífico do hall de entrada à disposição dos hóspedes. Havia, de facto, dinheiro em caixa mas era a minha primeira noite de trabalho, não me lembrei da existência do estojo e disse ao hospede que não tínhamos troco, acabando ele por mo oferecer e eu registar como entrada. Na noite seguinte, o patrão deu-me a gorjeta que eu tinha registado.

Recebi uma segunda gorjeta na segunda noite de trabalho, ontem, quando admiti completamente fora de programa um casal português às sete da manhã num quarto sobredimensionado, pelo qual cobrei erradamente o preço económico. A minha gorjeta consistiu em o cliente arredondar o preço e oferecê-lo a casa. Eu registei a oferta e o patrão chefe quando chegou, ou melhor, quando a segunda chefe filha-do-patrão chegou às nove da manhã ofereceu-me o euro da gorjeta.

Em relação a bebidas, esta noite vendi uma garrafa de água a um cliente num quarto económico na cave.

Neste momento, é uma da tarde do segundo sábado de Outubro. Terminei a minha terceira noite de trabalho às nove da manhã. Ao sair, levei o lixo ao contentor e acendi um charro a caminho da estação de metro. Resolvi reactivar a assinatura mensal do transporte público porque o vou utilizar todos os dias e compensa tirar o Andante. Foi logo na primeira manhã de descanso; antes de chegar a casa passei na Loja Andante da Trindade, tirei a senha e esperei a minha vez, havia setenta pessoas à minha frente e eu estava com pressa; resolvi ir sem bilhete a outra loja andante onde eu sei que o serviço é mais rápido porque é uma loja menos central que tem menos procura; concluí o processo em quarenta minutos. Voltei para casa com o propósito de dormir.

Dez e meia da manhã e eu sem sono. Foi há dois dias. E ontem também não descansei, não dormi de dia e hoje também não. O que eu pensei hoje às nove e meia da manhã quando esperava o metro de regresso a casa era que hoje também não iria dormir. Pensei também que me esqueci de despejar o cinzeiro utilizado por mim durante a noite. Levei o lixo ao contentor mas antes esqueci-me de despejar o cinzeiro. Não foi por mal, foi apenas esquecimento, tenho de melhorar os pormenores, afinar o meu trabalho.

Por exemplo, hoje servi pela segunda vez o pequeno-almoço a um casal de polacos. Hoje correu bem, ontem foi mau demais. Servi-lhes o café antes do leite, eles levantaram-se para ir procurar uma malga para pôr os cereais, o que é uma tarefa minha e que hoje corrigi. Ontem, tive a desculpa por ter sido a primeira vez, hoje correu melhor: até lhes falei dos quarteirões locais com exposição e venda de arte para eles explorarem enquanto estão na cidade.

O chefe patrão vem sempre às seis e meia da manhã fechar as contas da noite e abastecer a Residencial de alimentos e outros artigos, pão e croissants frescos para o pequeno-almoço. Ontem, ensinou-me a montar a mesa com os pratos, pires e chávenas, a colocar celofane no pão e no croissant, a preparar as fatias de queijo e fiambre; mas ontem esqueci-me de colocar o açúcar e as colheres para os cereais. Hoje corrigi. Montei a mesa às seis da manhã e quando o chefe chegou, meia hora mais tarde, mostrei e ele aprovou.

Bom, hoje correu melhor mas a polaca pediu um chá e eu reparei que não havia água engarrafada para aquecer no bule ao fogão, perguntei se podia ser de torneira, ela disse que sim. Pus o bule no fogão eléctrico e demorou quinze minutos a ferver. Foi quando reparei que ao lado do fogão havia uma chaleira pronta para aquecer água. Foi mais um erro por inexperiência e distracção, e também serem oito e meia da manhã e estar há quase doze horas a trabalhar, ajuda a desculpar. Mas no próximo pequeno-almoço não vou errar neste pormenor.

 


sábado, 17 de agosto de 2024

Queixa das almas jovens censuradas


Dão-nos um lírio e um canivete e uma alma para ir à escola mais um letreiro que promete raízes, hastes e corola Dão-nos um mapa imaginário que tem a forma de uma cidade mais um relógio e um calendário onde não vem a nossa idade Dão-nos a honra de manequim para dar corda à nossa ausência. Dão-nos um prémio de ser assim sem pecado e sem inocência Dão-nos um barco e um chapéu para tirarmos o retrato Dão-nos bilhetes para o céu levado à cena num teatro Penteiam-nos os crâneos ermos com as cabeleiras das avós para jamais nos parecermos connosco quando estamos sós Dão-nos um bolo que é a história da nossa historia sem enredo e não nos soa na memória outra palavra que o medo Temos fantasmas tão educados que adormecemos no seu ombro somos vazios despovoados de personagens de assombro Dão-nos a capa do evangelho e um pacote de tabaco dão-nos um pente e um espelho pra pentearmos um macaco Dão-nos um cravo preso à cabeça e uma cabeça presa à cintura para que o corpo não pareça a forma da alma que o procura Dão-nos um esquife feito de ferro com embutidos de diamante para organizar já o enterro do nosso corpo mais adiante Dão-nos um nome e um jornal um avião e um violino mas não nos dão o animal que espeta os cornos no destino Dão-nos marujos de papelão com carimbo no passaporte por isso a nossa dimensão não é a vida, nem é a morte

Natália Correia

desenho no vídeo de Jean Cocteau